Liderança feminina na China

Márcia Matos mora na China desde novembro de 2017 e trabalha como farmacêutica-bioquímica em Pequim. Em entrevista ela fala sobre a “Liderança Feminina na China“, um tema muito atual!

Em 1995 aconteceu a “4ª Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim, quando foi adotada a “Declaração e Plataforma de Ação de Pequim”. O documento é considerado o mais abrangente sobre os direitos das mulheres. Mas ainda hoje somente 10% dos países do mundo são liderados por mulheres. Em média as mulheres têm apenas 75% dos direitos legais dos homens, mundo afora. A estimativa do Banco Mundial é que pode demorar cerca de 150 anos para se atingir a paridade de gênero em salários.

Márcia Matos nos fala sobre sua convivência com mulheres chinesas na empresa francesa onde trabalha em Pequim, sobre as leis do país para proteger as mulheres contra discriminação no trabalho e muito mais!

“Me mudei para a China com o meu marido e minha filha mais nova em 2017. Tenho mais duas filhas no Brasil, uma médica e outra cursando o quinto ano de medicina. Sou farmacêutica-bioquímica e trabalho na área de pesquisa clínica, etapa fundamental do desenvolvimento de novos medicamentos. Atualmente sou diretora do hub na região da Ásia-Pacífico. Hub é o centro de uma atividade ou de uma região. No caso da minha empresa, existem três hubs para coordenar todas as atividades de pesquisa clínica. Um na Europa, um para as Américas e um para a região Ásia-Pacífico, pela qual eu sou responsável. Trabalho em uma indústria farmacêutica multinacional francesa. Atualmente gerencio equipes que estão baseadas na China, Coreia do Sul, Japão e Austrália.”

Você pode falar de como vê os conceitos de empoderamento feminino e feminismo na China?

O que eu vou compartilhar aqui é muito do que eu observo no dia-a-dia trabalhando com mulheres chinesas e liderando uma equipe onde 99% dos colaboradores são do sexo feminino. Como sou responsável por gerenciar toda a área Ásia-Pacífico, vejo uma grande diferença da posição das mulheres na China comparada com as mulheres no Japão e na Coreia do Sul.

As mulheres chinesas, com as quais eu trabalho aqui na China, possuem um lugar de grande destaque, e, na minha opinião pessoal, elas possuem um grande empoderamento de uma maneira muito natural. Elas não possuem uma atitude ou discurso feminista, elas naturalmente se posicionam em casa e no trabalho da maneira como querem ser reconhecidas e respeitadas. Por exemplo, percebo que em casa, elas contam com uma grande participação dos companheiros nas atividades domésticas. Eu descobri que na minha equipe, composta de diferentes cargos como assistentes, gerentes, cargo técnico, supervisoras, na grande maioria, os maridos ajudam bastante com o cuidado dos filhos, levando para atividades extra-curriculares nos finais de semana, por exemplo, ou indo à reuniões escolares quando o trabalho deles permite essa flexibilização, mostrando que essa atitude está presente no dia-a-dia delas. Além disso elas contam com um grande apoio familiar, as mulheres chinesas são incentivadas pela família a seguirem suas carreiras. Esse é apenas um recorte do que eu vivencio na empresa que trabalho. Mas acredito que é uma tendência na China.

Por ocasião do “Dia Internacional das Mulheres”, fui convidada pela escola da minha filha para participar de uma mesa redonda, onde o tema era o “Empoderamento feminino no mundo“. As palestrantes convidadas, além de mim, eram: uma atriz e apresentadora de TV, que foi a primeira chinesa a conquistar uma medalha de ouro na ginástica olímpica, a outra foi a primeira chinesa a ganhar o título de Miss Universo, além de duas chinesas fundadoras e CEOs de Start-ups de sucesso na China. Uma delas é arquiteta e autora de vários livros na área e a outra é uma estrangeira, fundadora e CEO de uma entidade dedicada ao desenvolvimento de mulheres. Todas disseram durante o debate que sempre se sentiram à vontade no mercado de trabalho e nunca tiveram dúvidas se teriam alguma dificuldade de conquistar o seus objetivos por serem mulheres, elas simplesmente seguiram suas trajetórias. Elas falam que chegaram onde desejavam sem dar muita ênfase aos desafios enfrentados e sim às suas habilidades.

Essas mulheres de sucesso reforçaram a importância das mulheres jovens, que estão iniciando suas carreiras, a serem determinadas e nunca desistirem, acreditarem em si mesmas e defenderem suas próprias ideias. Para isso o acesso a educação de qualidade igualitária entre os gêneros é um fator indispensável!

Na empresa onde eu trabalho sempre existiu um grande número de mulheres na liderança e essa igualdade de gêneros já está na cultura da empresa. Na filial chinesa, que é a maior do grupo dentre 150 países, existem três grandes setores, onde dois são liderados por mulheres. Além disso existem 14 departamentos e se analisarmos a proporção entre homens e mulheres, oito departamentos são comandados por mulheres e seis por homens. Na minha equipe, por exemplo, tenho cinco gerentes e somente uma pessoa do sexo masculino.

“Claro que sabemos que na China, como em qualquer outro país do mundo, ainda existem pontos a serem melhorados nesse aspecto, mas foi uma grande surpresa para mim observar o quanto estão avançados, se comparado com a realidade em outros países asiáticos.”

Nos fale sobre sua experiência como executiva brasileira na área farmacêutica na China. Aceitação, língua e cultura dentro da empresa. Como lida com as diferenças?

Como fui transferida para a China pela mesma firma, onde eu já trabalhava há 15 anos no Brasil, não senti diferença dentro da empresa. A língua é uma das grandes dificuldades de se trabalhar na China, pois mesmo lidando com médicos e pesquisadores de ponta, existe uma certa resistência em se utilizar a língua inglesa. Muitas vezes é necessário ter uma pessoa para fazer a tradução e isso dificulta muito a interação.

Com relação a gestão de pessoas precisei adaptar o meu estilo de liderança e aprender muito sobre a cultura chinesa e asiática em geral. O que funcionava na minha forma de gerenciar no Brasil não necessariamente se aplica na China. Comecei também a observar a linguagem não verbal, pois os chineses não se expressam de maneira muito clara, principalmente quando sua opinião não é a mesma de uma pessoa de hierarquia superior. Entender essa linguagem e traduzir parar a matriz as necessidades ou pensamentos que não eram verbalizados durante as reuniões também foi bastante desafiador. Além disso pude observar grandes diferenças culturais entre os países asiáticos e nessa questão precisei me dedicar mais para entender essas dessemelhanças, já que precisava que trabalhassem bem em equipe.    

O que pode nos falar sobre a situaçao das mulheres no mercado de trabalho chinês?

Podemos observar que a igualdade entre gêneros no mercado de trabalho continua a melhorar na China, o que é demostrado em números no relatório “Women’s working situation in China” de 2020 e 2021. Nesse último relatório de 2021 podemos observar que a média salarial das mulheres ainda é 12% menor que a dos homens, em média, apesar de exercerem a mesma função e de terem o mesmo nível de responsabilidade. Mas o relatório também mostra que essa diferença vem diminuindo nos últimos dois anos.

A pandemia colocou as mulheres em uma posição bem difícil no mercado de trabalho, pois as mesmas precisaram lidar diretamente com o cuidado dos filhos, já que os avós não podiam ajudar nesse período e as escolas estiveram fechadas. Os avós na China já se preparam para cuidar de seus netos muito cedo, já que isso é uma atribuição natural para eles. Aqui a maioria se aposenta aos 60 anos, uma idade relativamente jovem e então se dedicam a cuidar dos netos.  

As mulheres ainda lidam com um certo grau de preconceito no mercado de trabalho chinês, como, por exemplo, serem questionadas sobre casamento e cuidados com os filhos. Existem leis na China que protegem as mulheres no ambiente profissional para garantir que as elas tenham os mesmos direitos dos homens:

  • Um empregador não pode se recusar a contratar uma mulher ou colocar exigências durante o processo de recrutamento em relação ao sexo, salvo exceções.
  • Não é permitido, em nenhuma hipótese, incluir qualquer conteúdo que restrinja mulheres a casarem ou cuidarem de filhos no contrato de trabalho.  
  • Anúncios de empregos também não podem restringir nenhum gênero ou mostrar qualquer preferência.
  • Durante a entrevista, empregadores não podem perguntar às mulheres questões relacionadas ao seu estado cívil, filhos ou qualquer outra questão que possa levar à discriminação de gênero.

Há incentivos para as mulheres voltarem ao trabalho após terem filhos?

As mulheres possuem o direito a uma hora por dia para amamentação, após a licença maternidade. Esse horário é flexível e a mulher pode escolher o melhor período durante o dia. Muitas empresas fornecem uma sala dedicada para as mulheres poderem retirar o leite e algumas permitem que as mulheres possam levar seus filhos para o escritório em caso de necessidade.

Existe a possibilidade de se trabalhar meio período ou período parcial?

Atualmente não existe nenhuma lei que obrigue as empresas a oferecerem meio período em contrato para as mulheres. Esse tipo de acordo depende da demanda do trabalho e da necessidade da mulher e cada caso deve ser negociado entre as partes. Mas existem ofertas e oportunidades de trabalho para meio período no mercado de trabalho na China.

Algum outro aspecto que você ache relevante falar?

Eu tenho observado, nos diferentes processos de recrutamento que conduzi, que as mulheres que são mães pensam muito sobre o equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho. Esse costuma ser um ponto importante na escolha delas em onde trabalhar.

Tenho observado também que para as mulheres chinesas poder estar no mercado de trabalho é muito importante e são poucas as que querem abrir mão de uma vida profissional para se dedicar exclusivamente aos cuidados dos filhos. Para isso contam com um apoio muito grande da família, principalmente dos avós.

Um outro aspecto interessante é que a maioria das mulheres não querem ter mais de um filho, algumas têm dois filhos. Mesmo com a mudança recente da política do governo que permite que o casal possa ter até três filhos, a grande maioria das mulheres chinesas não consideram isso como uma possibilidade viável. E quando questiono o motivo, todas falam do custo de se criar um filho na China e da importância de terem tempo para poderem se dedicar às suas carreiras.

Obrigada Márcia pela disponibilidade de nos conceder esta entrevista!

——————————– // ——————————–

Esses são os princípios do empoderamento feminino:

1. Liderança: esse princípio busca estabelecer uma sensibilidade corporativa dos líderes de alto nível quanto à igualdade de gêneros.

2. Igualdade de oportunidades, inclusão e não-discriminação: esse princípio declara que deve-se tratar mulheres e homens de forma justa, com oportunidades iguais, incluindo cada um dos gêneros e não discriminando nenhum ser.

3. Segurança, saúde e fim da violência: com isso, fica estabelecido que o empregador deve garantir a saúde, o bem-estar e principalmente a segurança de todas as mulheres e homens da empresa.

4. Formação e educação: é necessário promover uma formação, capacitação, educação e de desenvolvimento profissional para mulheres.

5. Empreendedorismo e políticas de empoderamento: com isso, quer dizer que as empresas devem apoiar o empreendedorismo de mulheres e as práticas de marketing que empoderem as mulheres.

6. Ativismo social: além disso, as empresas devem também promover a igualdade em práticas comunitárias e o ativismo social.

7. Acompanhamento de resultados: por fim, as empresas devem medir e acompanhar os resultados dessas práticas de igualdade de gênero. Aliás, devem também documentar e publicar esses resultados, estabelecendo transparência.

Tags , , , , , , , , .Adicionar aos favoritos o Link permanente.

Sobre Claudia Bömmels

Claudia Bömmels é fotógrafa, contadora de histórias, viajante e editora da Brasileiros Mundo Afora. Atualmente ela mora em Nanjing na China.

Os comentários estão desativados.