A pandemia chegou com tudo e transformou a vida de muitas famílias por todos os lugares do mundo, assim como a de Larissa, Gogue e dos dois filhos, Arturo e Nina, 12 e nove anos respectivamente. Eles são uma família brasileira que vive na China e passaram pela dificuldade de ficarem separados por 11 meses, em consequência da política de “tolerância zero” imposta pelo governo contra o coronavírus. Em setembro do ano passado eles vivenciaram o tão esperado reencontro em Ningbo, cidade onde residem. A seguir, Larissa relata sobre sua trajetória, os desafios de morar na China em tempos de pandemia, como foi o processo de retorno do marido ao país e sobre as lições adquiridas nesse período tão desafiador em que ficou sozinha com os filhos.
“Quando morávamos no Brasil, eu trabalhava como professora de educação física na Escola Americana de Brasília. Meu marido Gogue tinha um foodtruck e um restaurante mexicano. Em 2016, após finalizar o meu mestrado em educação, decidi explorar o mundo com minha família, mas só consegui iniciar a busca de emprego no ano seguinte. Confesso que nunca pensei em morar na China, um lugar tão distante e desconhecido, mas ainda assim acreditei que seria uma boa ideia e resolvi enviar meu currículo para uma escola internacional em Ningbo. O incentivo do meu marido foi essencial para me candidatar a esse emprego e o resultado foi que logo assinei o contrato. Nos nove meses seguintes fechamos o restaurante, vendemos e doamos muitas coisas, alugamos a nossa casa. Depois de 19 anos trabalhando no mesmo lugar, eu estava fechando um longo capítulo da minha vida para iniciar uma nova aventura com minha família. Chegamos na China no dia 20 de agosto de 2018.
Família de mudança para a China. Arturo com oito e Nina com cinco anos.
Vida internacional
Nasci em Aquidauana, Mato Grosso do Sul, cidade conhecida como um dos principais portais do Pantanal. Meu pai era militar e, quando eu tinha seis anos, mudamos para Londres, uma experiência que transformou completamente a minha visão de mundo. Fui alfabetizada em inglês e, apesar de falar português com minha família enquanto morávamos na Inglaterra, o meu tempo na escola era longo, o que me fez esquecer muita coisa da minha língua materna. De volta ao Brasil, minha mãe teve receio da minha adaptação na escola brasileira e decidiu que eu repetisse a segunda série, o que logo nos primeiros meses mostrou-se desnecessário. Hoje, por experiência pessoal e profissional trabalhando em escolas internacionais, tenho a oportunidade de aconselhar pais de alunos sobre esse assunto. É natural que eles se preocupem, mas posso dizer que as crianças geralmente se desenvolvem com extrema facilidade e rapidez em um novo ambiente, surpreendendo a si e à família.
Costumo dizer que a vida internacional é viciante. A vontade de viajar, enfrentar novos desafios e conhecer culturas e lugares diversos, só aumenta. Na minha opinião, após a China, onde as diferenças culturais são enormes e a barreira da língua desafio diário, poderemos morar em qualquer outro lugar com facilidade. Foi muito importante oferecer essa oportunidade para que meus filhos aprendam que a verdadeira beleza do mundo está nas diferenças. Um dia eles vão entender melhor e espero que valorizem esse tempo que vivemos aqui.
Saída da China e o difícil retorno
Temos uma pequena propriedade em Goiás e em outubro de 2020, Gogue precisou ir até lá resolver questões inadiáveis na nossa fazendinha. Sabíamos das dificuldades de se regressar à China, mas nunca imaginávamos que esse processo seria extremamente complicado.
Em abril de 2021, começamos a organizar o seu retorno. Sabíamos que tomar a vacina facilitaria o processo de entrada no país, por isso ele tomou duas doses em Brasília. Decidimos que ele tentaria entrar através da Tailândia, e de acordo com experiências de outros brasileiros que tiveram sucesso fazendo esse mesmo caminho, era necessária uma permanência minima de 30 a 40 dias no país. Após a quarentena em Phuket, começamos uma nova saga, a fase mais crítica. Gogue viajou para Bangkok com o propósito de aplicar para o código de autorização na Embaixada da China para poder embarcar, pois, na situação atual, apenas esse código autoriza o embarque. Foram quatro tentativas até ser aprovado.
Tínhamos feito tudo que a embaixada solicitou, todos os comprovantes, documentos, intermináveis testes negativos de coronavírus estavam em mãos e, ainda assim, eles tinham todo o poder de nos negar o código. Enfim, dia 17 de agosto ele embarcou em Bangkok com destino a Xangai, aterrizando em terras chinesas no mesmo dia. Após cumprir 14 dias de quarentena em Xangai e mais 14 dias na nossa casa, em Ningbo, no dia 16 de setembro, enfim, pudemos nos abracar novamente!
Desafios
Durante esse tempo, vivenciei vários desafios. Somos uma família muito unida, e além da saudade que sentimos dele como pai e marido, sofremos com a enorme falta que o Gogue fez como parceiro no dia a dia. Ele auxilia as crianças nas tarefas de casa, afazeres domésticos e é quem providencia as refeições. Continuei trabalhando normalmente de segunda a sexta-feira. Há algo extremamente prático aqui na China: fazer compras por aplicativo. Nada como escolher os produtos do conforto do seu lar e receber com segurança e rapidez. Essa ferramenta me ajudou muito durante o tempo que cuidei sozinha das crianças. Sentirei falta disso!
Nesse período, fiquei bastante sobrecarregada, mas permaneci firme praticamente o tempo todo. Eram raros os momentos de fraqueza, até porque eu precisava ser forte para as crianças. Eu procurava manter o pensamento e o comportamento positivos, isso deixava o clima leve. Procurei também ser mais prática e simplificar a nossa vida, além de usar os aplicativos com maior frequência, também comecei a fazer comida para dois ou três dias. Durante esse tempo, dormi pouco tentando conciliar a vida profissional e familiar. Lembro-me das inúmeras vezes que fiz video call com o Gogue de pijama, era a minha hora de dormir e no mesmo momento ele almoçava no Brasil. Conversávamos até eu adormecer.
Não há como negar que a tecnologia ajuda demais, mas nada se compara a presença física, o toque, uma conversa olho no olho e um abraço.
No inverno, minha cama ficou grande demais e gelada, então inventamos uma nova regra: Arturo e Nina poderiam dormir comigo nos finais de semana. Eles deram pulos de alegria, mas, no fundo, quem ficou mais feliz fui eu. Procurávamos manter a cabeça ocupada e o corpo em movimento para não dar lugar à tristeza. As crianças continuaram indo para a escola e eu trabalhando. A nossa vida social ficou mais agitada, participamos de muitas reuniões com os amigos, convidamos pessoas para visitarem nossa casa. Arturo machucou o joelho jogando futebol e não conseguia andar sem sentir dor, mas nem isso nos impediu de viajar. Consegui uma cadeira de rodas emprestada e fomos a Disney com a turma da escola e também viajamos para Wuhan. Embarcamos para Pequim, após o final do ano letivo, em junho e, depois disso, seguimos viagem para outras cidades, que fazem parte da rota da seda.
Viajar é uma das minhas grandes paixões e os meus filhos são meus companheiros de aventuras, topam tudo e isso me traz uma alegria enorme! Viajar juntos nos uniu ainda mais.
Futuro
Não sabemos ao certo quanto tempo ainda ficaremos na China, mas a possibilidade de irmos embora existe e não deve demorar. A situação atual não nos permite viajar com liberdade para o exterior ou para muitas cidades na própria China. Não há como planejar o futuro e as regras mudam com grande frequência, às vezes diariamente. O país segue com sua política “tolerância zero” contra o coronavírus, com as fronteiras ainda fechadas e regras internas rígidas quando algum caso se manifesta. Está cada vez mais difícil ficar tanto tempo distante da nossa família no Brasil e este é o argumento mais forte de querermos nos mudar daqui. Gostaríamos de morar em um lugar onde teremos o direito de ir e vir, desde que com segurança, claro!
Família novamente reunida em Ningbo, China.
O maior aprendizado que tivemos nesse período foi que não queremos mais nos separar. Podemos estar em qualquer lugar do mundo, em qualquer país, com qualquer situação financeira, mas precisamos estar nós quatro. Sentimos que, juntos, conseguimos enfrentar qualquer dificuldade.”
Quero deixar os meus agradecimentos:
Primeiramente a você, Claudia. Obrigada por se interessar pela nossa história e compartilhar de maneira tão bonita. Quem sabe, isso vá ajudar outras famílias que estejam nessa situação. Não desejo que ninguém passe por essa dificuldade. Muitas pessoas do Brasil, China e Austrália nos deram um suporte fundamental nessa etapa. Citarei os nomes aqui e espero não esquecer de ninguém:
Luciana Medeiros, Claudia Mota, Crisson Prado, Ana Eunice Prado, Joaquim Brasil Neto, Edburgo Soares Filho, Stephanie Chang, Claudia Alves, Roberto Alves, Glaucia Lanzoni, Flavio Minoru e 木杉.
Um obrigado especial ao guardinha de trânsito que salvou o Gogue dando carona de moto num momento de aperto em Bangkok. Gostaria muito de saber o nome dele.
Obrigada, amigos e família! Agradeço também a todos que enviaram palavras de conforto e motivação. Isso ajudou demais! A vocês, o meu amor e minha gratidão. Larissa ❤
Encontre Larissa, Gogue, Arturo e Nina no Instagram: @familianachina
Revisão de texto: Rachel Mezaros